
EPISTEMOLOGIA DA CRIMINOLOGIA
- O QUE É EPISTEMOLOGIA?
- Nosso medo dos termos filosóficos.
Vivemos em uma época em que – pela agilidade da informação, burocratização excessiva e obsessão pela especialização das tarefas – perdemos o contato com a cultura filosófica. A filosofia virou algo destinado ou aos sábios ou aos "malucões". Em todo caso, algo descartável na nossa época da instantaneidade, da imagem, do espetáculo.
- Paradoxo: o "inútil" saber filosófico é sempre um dos primeiros a ser proibido.
Por que, então, quando ocorre um regime autoritário, os filósofos são alguns dos primeiros a serem perseguidos? Se seu saber é inútil, por que então persegui-los, e não os deixar falando sozinhos? Esse paradoxo já indica que há algo de errado nessa nossa crença. Tentemos verificar o que é.
O que é "útil"?
Quando digo a frase: "a filosofia é inútil", estou dizendo uma frase que pretende ter um sentido de verdade. E, por isso, está submetida a um juízo. Como justificar essa verdade? A partir de argumentos. Preciso argumentar para dizer que minha frase é verdadeira. Porém, para um filósofo, surge instantaneamente a pergunta: ao proferir a frase "a filosofia é inútil", o que queres dizer com inútil? O que é inútil ou, melhor dizendo, e já antecipando, o que é o útil? Alguém pode responder: útil é o que é bom para mim. E aqui o filósofo já abriria pelo menos mais dois flancos: o que é bom? O que é "para mim"? O bom é o que me dá prazer ou o que eu penso que é razoável? O "para mim" significa para meu eu ou para todas as pessoas em geral? Mas o filósofo poderia abrir ainda um terceiro flanco: poderia perguntar: o que significa a filosofia ser inútil? Significa que ela "não serve para nada"? E, por ela não servir para nada, eu não devo filosofar? Ou há coisas que "não servem para nada" e, mesmo assim, continuam sendo importantes? O critério para decidir algo é apenas o da utilidade? - Uma pista: já caímos na linguagem e na filosofia.
A realidade parece nos indicar que, diante de toda nossa argumentação, a frase "a filosofia é inútil" já é, ela própria, filosófica. Quer dizer: na medida em que usamos palavras, na medida em que entramos na linguagem, já entramos na discussão filosófica. Quando dizemos "a filosofia é inútil" já sabemos o que significa "filosofia", "inútil" e que isso significa algo pejorativo. Porém não há escapatória: tudo que eu digo pode ser objeto de interrogação. E, por ser suscetível dessa interrogação, abre-se a possibilidade do pensar filosófico.
- O que é a filosofia?
Imaginem um prédio. O que enxergamos nesse prédio? Via de regra, enxergamos as cores das paredes, a iluminação, os sofás da sala de espera, as mesas, etc. Vemos a "decoração" ou a "fachada" do prédio. Mas será que esse prédio estaria em pé se não tivesse fundações sólidas? Sem fundações, é possível que o prédio fique em pé? Se não tivermos apoiados sobre sólidos fundamentos, adianta ter uma bela fachada ou uma decoração suntuosa? O que acontece com um prédio com fachada esplêndida e decoração fantástica, mas construído sobre material barato e frágil? A beleza da fachada pode "segurar" o prédio? Há um invisível do qual depende o visível?
O visível – a fachada, a decoração – é sustentado pelo invisível – as fundações? Assim é a nossa metáfora. A filosofia fornece as fundações não-ditas de todos os nossos discursos. Enquanto falamos, estamos no logos, e, por isso, usando conceitos pré-dados. E, assim como o prédio depende da fundação, por mais belo que seja, também o nosso discurso depende dos fundamentos, por mais poderoso que seja. E – curioso – a fundação sobrevive sem o prédio, mas o prédio não sem a fundação. O invisível – aquilo que é pressuposto e não-pensado – sustenta o visível – aquilo que pensamos e dizemos. Então já sabemos que a filosofia cuida dessa parte invisível que sustenta o visível.
Mas – como? Como a filosofia cuida daquilo que está presente o tempo inteiro no nosso discurso – do cotidiano ao científico? Aqui já nos aproximamos definitivamente do que poderíamos caracterizar como a filosofia. Como se dá a filosofia? A filosofia é um permanente filosofar. Muitos filósofos articulam o que poderíamos aproximar da idéia de "sistema filosófico", no qual eles articulam uma série de conceitos que formam o seu "pensamento". Assim, por exemplo, Platão, Descartes, Hegel. Mas o denominador comum no exercício filosófico é o próprio filosofar. Mas o que é filosofar? Filosofar é sempre questionar o óbvio. Tudo aquilo que aos olhos do não-filósofo soa como óbvio é, para o filósofo, justamente o objeto da questão. Filosofar é quebrar a crosta de obviedade que enjaula o sentido. É questionar o inquestionável, colocar em questão as maiores obviedades. Filosofar é desbanalizar o banal.
A filosofia dá, portanto, os alicerces do pensamento.
- "A sociedade não suporta mais a corrupção";
- "João é acusado de pedofilia";
- "Bom mesmo seria viver em um mundo sem drogas";
- "Beto sofre de transtorno de personalidade anti-social";
- "A sociedade já não é mais a mesma";
- "Os alunos precisam de mais disciplina".
A epistemologia é a parte da filosofia que pensa a teoria do conhecimento. Por isso, toda ciência precisa passar por um crivo epistemológico. Para conhecer, é preciso saber como conhecer, o que é possível conhecer, etc. Não existe ciência que prescinda da interrogação filosófica, apenas algumas deixam as questões "entre parênteses".
A EPISTEMOLOGIA TRADICIONAL
Visão cartesiana do mundo.
Passo 1. A plena certeza e a tábula rasa.
O filósofo René Descartes tinha uma única preocupação em mente quando começou a refletir e tentar construir sua filosofia: construir um conhecimento do qual fosse possível ter plena certeza. Até aquele momento, a ciência e a filosofia eram ainda plenamente influenciadas pela Igreja Católica e, por isso, pela teologia, de modo que inúmeras questões de fé misturavam-se com questões da razão. Isso angustiava Descartes. Ele queria separar o conhecimento; queria fundar uma filosofia cuja verdade fosse assegurada não a partir da confiança ou da crença, mas da certeza matemática.
Seu primeiro passo poderia ser chamado de "limpeza de terreno". Descartes não sabia mais direito o que era e o que não era confiável, pois tudo estava misturado à sua época. Por isso, ele resolveu radicalizar (todo verdadeiro filósofo é radical, pois a filosofia é radical nas suas indagações): lançou o que chamamos de dúvida hiperbólica. Descartes passou a duvidar de tudo e, com isso, "zerou" o conhecimento, fez a chamada tabula rasa.Passo 2. A primeira certeza: o pensamento e o sujeito.
Bom, a partir desse momento Descartes duvidava de tudo. Somente acreditaria naquilo que a razão confirmasse. Foi então que, diante do fogo, sozinho, Descartes teve "uma luz": se estou duvidando, estou pensando. Ninguém poderia duvidar disso. Não pressupunha qualquer fé específica. Se penso, existo. É o famoso: "cogito, ergo sum". Penso, logo existo. Isso seria válido para todas as pessoas em todos os lugares. Esse "eu" não é apenas René Descartes, mas qualquer um em qualquer tempo e em qualquer lugar. É um Eu neutro e universal.
Com isso, a primeira crença da filosofia, cuja primeira pergunta é acerca do conhecimento, passa a ser a existência do sujeito. Cria-se a típica filosofia moderna: a chamada "filosofia do sujeito". O Eu – universal e neutro – é o ponto de apoio dessa filosofia.Passo 3. Como conhecer o mundo: razão, objeto e divisão.
Depois Descartes passou a investigar uma série de coisas, entre elas a existência de Deus.
O que nos interessa, contudo, é que com esse tipo de indagação ele fixou determinado método e determinadas convicções acerca do conhecimento – portanto epistemológicas – ainda produzem significativos efeitos. Quais são essas convicções?
Primeira: o sujeito do conhecimento é neutro e universal. Se nos basearmos na certeza que nos dá a razão lógico-matemática, os resultados indicarão convicções que transbordariam tempo, espaço e outros condicionantes.
Segunda: o melhor método de obter o conhecimento é, diante do objeto, parti-lo na maior quantidade de partes possível, pois a soma das partes nos dará o todo. Assim, quanto mais dividirmos o objeto que olhamos, melhor nossa razão poderá olhar – parte a parte – e afirmar suas certezas.A matriz científico-disciplinar da Modernidade
Quais foram os resultados da aplicação da matriz cartesiana ao conhecimento e, conseqüentemente, ao ensino:
Separação do conhecimento em diversas áreas, cada qual com método e objeto próprio. Por exemplo: a luta da teoria "pura" do direito de Hans Kelsen, no início do século XX, era justamente por construir uma ciência legítima, com método (normativo) e objeto próprio (a norma jurídica), separado, portanto, de áreas que "parasitariam" a ciência do direito (filosofia, com os valores, ou sociologia, com os fatos);
Busca por autonomia em cada disciplina: a autonomia é parte da legitimidade de uma determinada ciência.
Caso da Criminologia: a Criminologia sofria de um duplo problema: 1) não tinha um método claro, pois várias áreas disputavam o saber acerca do criminoso, do crime ou do desvio. Assim, não se sabia direito o que era "a" Criminologia, à medida que áreas totalmente heterogêneas como a medicina européia e a sociologia norte-americana reivindicam a "propriedade do terreno"; 2) não tinha objeto claro, pois alguns entendiam que criminoso era quem violava a lei penal, outros entendiam que era preciso um conceito mais amplo, de desvio. Sem falar nas disputas se a vítima ou o controle social faziam parte como objetos da Criminologia;
Um caso: assim, quando se depara com um problema de família, por exemplo, o jurista só domina as normas jurídicas que tratam do Direito de Família. Se ele tiver que analisar um conflito de violência doméstica, ele olhará tudo sob o prisma do direito. Se ele perceber que há problemas psicológicos, deve chamar um psicólogo. Se as pessoas que chegam a ele são de área culturalmente distinta, ele não é capaz de enxergar, porque não conhece antropologia. Sua resposta é uma única: lícito ou ilícito.A EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA
A Ruptura com a Filosofia do Sujeito
Duas grandes críticas foram feitas à filosofia do sujeito – pilar fundamental da construção de Descartes e de todo conhecimento moderno. Essas críticas foram as seguintes:
Inconsciente (Freud):
A primeira grande fissura feita na idéia de sujeito de Descartes – que parecia tão inequívoca – é de que esse sujeito parece estar sempre "consciente de si", seguro de si. Assim, nossa relação com o mundo se daria a partir da razão e, portanto, da consciência. No entanto, Sigmund Freud questionou essa primazia no início do século XX.
A descoberta de Freud foi a chamada existência do inconsciente, ou seja, que o ser humano "não é dono da sua casa". Existe uma camada psíquica poderosa que nos conduz nas ações sem que percebamos na nossa consciência. Assim, muitas e muitas vezes somos guiados por desejos inconscientes sem que o notemos. O "Eu" não é soberano. (Para brincar com a terminologia freudiana, ele é incomodado tanto por um "super-eu" quanto por um "isso").
Portanto, aquele "Eu soberano", todo-poderoso dono de uma razão que lhe assegura a verdade das coisas com bases nas certezas, não raro está envolto em circunstâncias que não domina nem um pouco, que são apenas projeções e assim por diante.
b) Linguagem (Heidegger, Wittgenstein, Saussure)
As mais diversas tradições filosóficas, com o tempo, chegaram à mesma conclusão: não existe pensamento sem linguagem. Portanto, ao contrário do que Descartes pensava, quando começo a duvidar ou pensar, a linguagem já está lá. E, portanto, quando o Eu aparece como condição da certeza, é porque ele já foi formado pela linguagem. Com isso, desbanca-se uma crença fundamental: o "Eu" não está separado do mundo. Quando o "Eu" se forma, o mundo já chegou. O "Eu" não pode ser o pilar fundamental porque simplesmente ele vem depois da linguagem. Para perceber isso, basta pensarmos em algo simples: quem seríamos nós se não tivéssemos linguagem?
Outros exemplos de questionamentos da filosofia do sujeito seriam possíveis (são inúmeros!). Basta citar autores como Lévi-Strauss, Michel Foucault, os movimentos transversais, etc. Todas essas posições confluem para o mesmo ponto: o sujeito universal, neutro e basilar da teoria cartesiana não existe.2. O Objeto: quando as simetrias não são verdadeiras
a) O todo e as partes.
O todo é igual à soma das partes; a soma das partes é igual ao todo, certo? Bem, nem sempre essa inequívoca formulação matemática é aplicável ao conhecimento. Por vezes, a soma das partes é maior que o todo. Pensemos, por exemplo, na nossa posição aqui: vocês, alunos, me ouvindo no papel de alunos; eu, professor, falando na condição de professor. Nós não exercemos outra série de papéis e somos muito mais do que as nossas posições de agora? Somos mais que o todo que formamos. E, por vezes, o todo é maior que a soma das partes. Há fenômenos em que, quando desagregadas as partes, perdemos características que só existem no todo. Podemos usar o mesmo exemplo: ao nos juntarmos aqui, ganhamos algo que perdemos quando nos separamos. Decompor essa turma em várias partes – analisando vocês e eu um-a-um – faria com que perdêssemos toda dinâmica que só se forma a partir do momento em que estamos reunidos.b) Compartimentação. Cegueira.
A compartimentação dos problemas acaba provocando cegueira em relação a outros aspectos importantes do problema. Um problema jurídico, por exemplo, não é apenas um problema jurídico, mas via de regra um problema político, comportamental, psicológico, cultural, etc.
O problema não é apenas que o jurista, por exemplo, esquece outras dimensões do fenômeno, ou as entrega cegamente para outros "especialistas". O problema é que não raro ele toma a parte pelo todo, e passa a considerar que a dimensão jurídica esgota a totalidade do fenômeno. Nesse caso, a cegueira se combina com certo narcisismo.POSIÇÃO DE CRIMINOLOGIA NA EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA
O que era defeito virou virtude. A ausência de fechamento e especificidade da Criminologia, de demérito, transformou-se em virtude. Se o que se busca agora não é mais a compartimentação, fragmentariedade, mas a integração e o diálogo entre as áreas, a virtude da Criminologia é que, desde sempre, ela de certa forma espelhou esse diálogo.
Multidisciplinaridade. A "multidisciplinaridade", que chegou a ser moda durante uma época, nada mais é que uma soma de enfoques, em que cada "especialista" fica encerrado em uma determinada área sem se deixar provocar pela outra. Por isso, é um processo insuficiente para dar conta da complexidade contemporânea.
Interdisciplinaridade. A interdisciplinaridade é o destino da Criminologia. Significa reunir os mais diversos saberes em um todo integrado, em que as áreas dialogam e se complementam entre si, sob a harmonia de uma matriz epistemológica integrativa, em que a abertura para a diferença esteja colocada.
Transdisciplinaridade. Possibilidade de rompimento de qualquer vínculo disciplinar e atravessamento dos campos por questões oriundas de outros, sem falar na possibilidade de recebimento de áreas distintas como a ética, a arte e a filosofia em geral.
Todo saber é um saber eticamente implicado. Não existe sujeito neutro nem saber sem implicação ética, mesmo que seja apenas o conhecimento desinteressado. Portanto, a questão metodológica deve sempre estar atento às questões éticas que se põe diante da pesquisa.
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